O tão prometido dia de colocar o nariz pela primeira vez...
Estava super nervosa com o dia do nariz. Apesar de já fazer esse trabalho desde 2006, as circunstâncias sempre foram muito diferentes. Meus alunos no Pestalozzi tinham deficiências que comprometiam bem mais suas capacidades de compreensão, comunicação, expressão... Era difícil alguém saber escrever seu nome, nem todos falavam de forma articulada e por aí vai. O contexto em que eu trabalhava implicava em uma série de mudanças nos exercícios e nas metodologias que eu havia aprendido, de forma a melhor se adequar para aquele público e atender às suas necessidades.
Uma dessas mudanças era o primeiro dia do nariz. No Pestalozzi, as primeiras oportunidades com o nariz de palhaço eram feitas individualmente. Cada um tinha o seu momento de colocar o nariz, porque era um elemento estranho, eles se distraíam facilmente e alguns se excitavam muito com aquela máscara. Fora isso, a maioria deles precisava de ajuda para colocá-la. As vivências em grupo com o palhaço, todos ao mesmo tempo, só vinham um tempo depois, quando eles já estavam mais habituados com o processo.
Essa turma do Xisto é diferente. Junto com Renata, estou propondo atividades que nunca tinha usado antes, ousando mais, indo mais a fundo... O grupo em geral entende bem os comandos e as orientações de cada jogo e nosso planejamento das aulas está cada vez mais afinado com o contexto da turma. Por que não, então, experimentarem o nariz todos juntos? Decisão tomada, portanto. Mas um coração nervoso que só...
Desde os primeiros dias de aula, todo o processo foi pensado para chegar até aqui, o momento de colocar o nariz. A idéia de que o palhaço é uma extensão de si mesmo, uma face sua mais dilatada, em que você tem liberdade para mostrar seus ridículos, suas bobagens. Que o nariz ao mesmo tempo te protege e te liberta, te dá “o prazer de estar presente” e “a alegria de ser quem é”. Que tudo bem andar diferente, mancando, ter uma mão menor que a outra, falar estranho... tudo ótimo! Pro palhaço isso é um presente, cada particularidade da pessoa é que faz o palhaço ser especial como ele é. Tudo isso foi dito, redito, pensado, trabalhado e vivido pelo grupo.
O momento da aula antes de colocar o nariz, uma espécie de preparação, foi também pensado nesse sentido. A sequência dos quatro exercícios escolhidos foi articulada de modo a trabalhar os mandamentos, os princípios que acreditamos no palhaço (acima descritos) e o estado do jogo (afinal, eles deveriam estar prontos para brincar!).
Para começar, repetimos o “escravos de Jó” após o aquecimento. Pasmem: a segunda vez que fizemos foi mais difícil que a primeira! Eles se confundiram mais, demoraram mais a entrar no jogo... Eu, dessa vez, não me arrisco a tecer hipóteses porque sinceramente não faço idéia dos motivos para essa diferente resposta. Não sei...
Passamos então para uma atividade que eu gosto muito, de olhar no olho, que havíamos feito no encerramento de uma aula dias atrás e desde lá aguardamos o momento certo para repeti-la. Nessa segunda vivência, para deixá-los mais à vontade (quando fizeram o exercício pela primeira vez olharam muito rápido, com pressa e sem tranqüilidade para olhar no olho dos colegas e ser olhado de volta) e trabalhar os princípios aqui já expostos, eu narrava o momento de cada um, dando estímulos para que sentissem, além da “solidão”, o “prazer em estar presente” e a “alegria de ser quem é”.
Inspirada no Angela de Castro way of teaching (risos), os comentários que eu fazia seguiam a seguinte linha: eu (cada aluno) sou massa, super interessante, justamente porque sou do jeito que só eu sou. Eu falava na primeira pessoa, como se fosse a voz de quem estava no centro, coisas do tipo: “Opa... Tudo bem? Tão me olhando... Me acharam interessante? Eu sou mesmo! Vocês também são. Vocês viram como eu tenho uma mão diferente da outra? Viram que bacana? Pensando o que? É só pra quem pode... Se tivesse loja de mão, minha mãozinha ia ser a mais cara! Porque ela é super exclusiva!”.
Foi absolutamente lindo. Eu fiquei em alguns momentos emocionada com a reação de cada um. Eles se sentiam mais à vontade em ficar no centro (não fugiam!) e iam visivelmente acreditando, concordando e enfatizando os meus comentários! Os olhinhos brilhavam, sorriam, concordavam com a cabeça, mostravam o corpo... Lindo de ver.
Depois fizemos o “Iupiiiiii!!!!”, um por um. Dessa vez o grito foi apresentado enquanto exercício, do jeito que nós palhaços filhos de Casali (e de Angela) aprendemos. Fizeram um por um e eu nunca me diverti tanto com o Iupi na minha vida! Teve quem urrou no grito, caiu no chão, continuou correndo até quase atravessar o espelho... Foi engraçadíssimo.
Houve quem, contudo, relutou em fazer o exercício. Eu, que achava ele tão leve, divertido... Pensando bem, de fato quem está ali fica numa situação bastante ridícula: corre, pula, grita, pára em pose hilária e todo mundo olhando. Dos oito, três enrolaram um pouco para fazer, mas fizeram. Desses três, um só aceitou quando Renata prometeu fazer junto com ele. Fez, mas saímos da aula com a impressão de que ele ainda tem muitos nós pra desatar, timidez, insegurança. Alguém pra ter mais cuidado e atenção.
Após o Iupi, Renata apresentou alguns exercícios que aprendeu com Thierry Trémouroux, um ator e palhaço belga. Na primeira parte, divididos em duplas os alunos riem, choram, riemXchoram olhando pro seu parceiro. Na segunda parte, ficam todos no chão, como se fossem baratas, enquanto Renata “passa inseticida” neles, que devem se contorcer, gritar, o que vier na hora. Uma sequência para aquecer, brincar, se expor, se mostrar ridículo e deixar o corpo falar por si só.
Chega, então, o momento de botar o nariz. Cada um recebeu o seu aleatoriamente (eu tenho oito narizes vermelhos de látex em diferentes formatos e a distribuição foi feita no susto... na próxima será feita com mais critério, pra combinar com o rosto e o jeito de cada um) e ficou num cantinho aguardando pra colocar o nariz, enquanto eu lembrava tudo o que trabalhamos até ali. Colocaram os narizes (houve quem precisasse de apoio), viraram, olharam os colegas... Depois dançaram. Sozinhos, juntos, em duplas...
O momento do nariz acabou sendo menor do que o planejado (atrasamos um pouco demais para começar a aula), mas foi tão tranqüilo, natural, que só horas mais tarde que eu me toquei: não apareceu nenhum Patati Patatá! Nada contra, cada um faz o trabalho que acredita, mas não é nesse palhaço que eu boto fé, creio e pesquiso. Não é essa idéia de palhaço que propomos nesse curso e, naturalmente, não é o que esperamos que eles tragam. A idéia era um palhaço bem próximo ao que eles são, mais natural, sem grandes esforços para ser engraçado ou ridículo. Afinal, eles têm o privilégio de já se apresentarem ridículos sem intenção nenhuma! Não é todo mundo que tem uma perna diferente da outra, um bocão, um corpão enorme, uma vaidade que chega a ser hilária... O palhaço tem mais é que aproveitar isso que eles têm.
Sinceramente: bom trabalho! Para eles e pra nós duas. Ah... Eu tenho o direito de ficar feliz com o que faço! Por que não?
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