terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

É tempo de ousar. (Aula 16/02)

Estamos perto do final da oficina. Antepenúltima aula. Está na hora de começar a direcionar os nossos encontros para o que será utilizado na saída dos palhaços e de ousar um pouco mais. Quando eu dava aulas no Pestalozzi, o mais perto que cheguei de construção de cena foi ano passado, quando trabalhei com os alunos conflitos presentes em números clássicos de palhaço: o que tem um jornal para ler X o que não tem; o que tem um suco pra beber X o que está com sede; o que tem o que comer X o que está com fome. Sempre relações de poder apresentadas aos alunos, que deviam representar os conflitos ao seu modo.

Surgiam situações interessantes e saídas curiosas para as dificuldades apresentadas. Em uma aula, por exemplo, quando apresentei o conflito do suco, eu conversei com um aluno: “Ele bebeu o suco que estava no seu copo. Agora, se você olhar o copo, ele estará cheio ou vazio?” Silêncio... “O copo estará com suco ou sem suco?”, insistia eu. Resposta: “Tem suco lá em casa!” Perfeita lógica de palhaço, é ou não é?

Apesar das respostas peculiares, nunca tive oportunidade de aprofundar nesses conflitos ou conseguir que eles propunham a resolução dos mesmos. A turma, como eu já comentei algumas vezes, tinha mais dificuldades, outros desafios e as capacidades para improvisar ou articular uma construção de cena precisavam ser mais desenvolvidas.

Nesta oficina do Xisto que encerra no dia 23, as possibilidades são outras. Quase todos se expressam bem verbalmente, entendem os comandos e as propostas durante as atividades e já vêm apresentando não só uma capacidade, mas uma vontade de criar sob uma perspectiva mais cênica. Chega o momento, então, de novos desafios e três exercícios de picadeiro foram utilizados nesse sentido.

Antes destes exercícios, fizemos o aquecimento de praxe e algumas atividades que trabalhassem as relações das duplas e alguns aspectos técnicos do palhaço, como o “olhar com a máscara (nariz)”.

Após o aquecimento, fomos lembradas pelo próprio grupo que G., que faltara na aula anterior, não havia recebido seu nome de palhaço. Refizemos o nosso ritual de batizado e, ainda que não tenha tido a mesma atmosfera da aula anterior, G. acreditou muito naquele momento e recebeu com gosto o seu nome paspalho: Zé Bão Dismilingüido. “Esse eu gostei!”, disse ele.

As três atividades em dupla que se seguiram antes da segunda parte da aula foram: caminhadas em espelho (que fizemos na quarta anterior), açãoXreação, foco da máscara. As duas últimas foram coordenadas por Renata, e tiveram ótimas respostas. Na de açãoXreação, as duplas estavam dispostas na sala e deveriam encenar uma “luta” em que um fazia e o outro respondia com o corpo. Eram incentivados golpes mais ridículos, como fazer cócegas, puxar o nariz, e tudo deveria ser feito sem tocar no colega, a uma distância segura.

A atividade que trabalhava o foco da máscara tinha um comando simples: cada palhaço deveria seguir “olhando com o nariz” a todo custo a mão do seu parceiro, que brincava de andar com a mão para trás, para frente, levantá-la, abaixá-la, aproximá-la etc. Após um momento inicial de dificuldades em ambas as atividades, as duplas realizaram as propostas com maturidade e concentração impressionantes.

Partimos então para a segunda etapa do dia, que também era composta por três exercícios de duplas, que seguiam uma ordem crescente de grau de dificuldade. O primeiro deles era mais simples e familiar ao que já havíamos trabalhado durante a oficina. Cada dupla deveria combinar como se apresentar para a platéia, sendo que sempre cada palhaço deveria apresentar o seu parceiro, falando o seu nome recém-batizado. Na minha visão, é como se fosse uma segunda versão nossa do “Vamos falar um oi”. A diferença entre este e o “Como vai...? Muito bem...”, é que neste não há texto prévio, apenas a orientação de que têm que falar os nomes de seus parceiros, e, portanto, requer uma maior articulação da dupla para o que será ensaiado e apresentado. Outra orientação que demos foi que cada palhaço deveria apresentar o seu parceiro como a pessoa mais interessante do mundo e que a apresentação deveria ser feita de forma “teatral”, para estimular nos alunos uma expressividade maior em cena.

Nesta, Renata e eu nos revezamos auxiliando as duplas, no intuito de estimular a tal “teatralidade” que pedimos. Não opinamos no conteúdo das cenas que estavam ensaiadas ou nos seus respectivos textos, apenas trabalhamos a execução dos mesmos. Nas apresentações, tivemos grandes lindos momentos. Os textos que conhecemos no processo de cada dupla já não eram mais os mesmos e assistimos apresentações interessantíssimas, desde os que usaram mais o corpo aos que arriscaram mais nos diálogos: “Este é Basquetino. Ele é alto, é atleta e é bom de basquete.// Este é Forestino. Ele é alto, é charmoso e é inteligente.” Uma graça.

A segunda atividade foi a nossa versão do “Faça uma coisa engraçada”. O citado exercício é famoso em iniciação de palhaço por ser um dos mais temidos pelos participantes. A proposta parece simples: cada palhaço deve entrar em cena e fazer uma coisa engraçada. Ponto. É isso. Mas ô coisa difícil! Quase sempre, quando funciona é porque o palhaço encontrou o ponto certo entre deixar a mente aberta (piadas planejadas raramente dão certo nesse exercício) e ter a sensibilidade para, quando vêm uma coisa à tona, reconhecer sua comicidade e aproveitá-la em cena. Equilíbrio difícil de conseguir. Fiz esse exercício duas vezes. Uma até que não foi tão ruim... mas a primeira foi um desastre!

Na nossa versão, como aconteceu com o “Vamos falar um oi”, modificamos a proposta de uma improvisação livre para uma cena pensada previamente que, no nosso caso, seria feita em dupla. Do exercício que Renata e eu conhecemos, fica o mote e o trabalho da comicidade, que até então não havia sido feito na oficina. E foi um sucesso. Houve quem trouxesse referência de gags clássicas (como puxar a cadeira do colega que vai sentar), quem encenasse algo mais teatral, quem fizesse piada com diálogos construídos e quem até representasse uma brincadeira que, aos olhos deles, é engraçada (pega-pega).

Eu ri horrores. E ri de verdade, seja porque fiquei boquiaberta com a capacidade de criar piadas, ainda que estas precisem ser trabalhadas se aproveitadas posteriormente, seja porque assistimos situações verdadeiramente ridículas. Ridículas e risíveis, com toda a leveza que elas têm que ser. Um pega-pega feito em círculos, com Seu Feijão Dismilingüido fugindo (todo “dismilingüido”) de um parceiro que tentava pegá-lo parado no lugar. Uma cadeira que, para ser puxada, tinha que ser antecipada dos cochichos “Vai, agora você. Tem que puxar a cadeira...” Tudo cheio dos mandamentos do palhaço: inocência, ingenuidade, divertimento, prazer de estar presente...

Por fim, o desafio maior... Passamos para o grupo algo como um princípio de cena, baseado em um número clássico de palhaço. Este princípio apresentava um conflito muito simples: Dois palhaços; um tem um jornal e quer lê-lo sozinho; outro quer ler, mas não tem jornal. O jogo, portanto, está no segundo palhaço tentar a todo custo ler o jornal do seu parceiro, enquanto este não deixa de jeito nenhum. Passada essa dinâmica, o desafio que demos para cada dupla foi de apresentar essa “cena”, com um final criado por eles.

Dessa vez, foi Renata que não acreditava muito na idéia, mas se deixou convencer ao passo que a aula foi acontecendo e eles foram demonstrando suas habilidades de criação e representação. Partiram, então, para a criação. Das três duplas que ficaram (uma precisou sair mais cedo), uma precisou da ajuda de Renata, que deu alguns toques na resolução do conflito do jornal. As apresentações foram, mais uma vez, interessantíssimas. De soluções simples, como roubar o jornal do outro e terminar a cena, às mais elaboradas (cheias de drama, falas), cada dupla deu a sua versão do final da história.

A aula terminou e Renata e eu compartilhamos do mesmo ar de “orgulho dos alunos”. Foram tantas melhoras aparecidas de uns encontros pra cá que temos ficado verdadeiramente felizes com esse trabalho. Ver a desinibição crescente do mais tímido, um sorriso lindo em alguém mais fechado, uma encenação empolgada no que parecia menos motivado.

Suspiro de satisfação no ar.

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