quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Um passeio pela caverna (Aula 26/01)

“Menina, e essa chuva?”

“Das duas, uma. Ou eles já saíram de casa, ou eles não saíram e aí...”

“É. Vamos de qualquer forma, né? Pra ver quem aparece.”

“Sim. Já estou a caminho”.

10 minutos depois:

“Olha, fique feliz porque você já tem quatro bufõezinhos!”

Cheguei no Xisto atrasada. Molhada da chuva que peguei na porta de casa. Waldemar Falcão alagada, Vasco da Gama alagada... A notícia dos quatro presentes já era muito boa e eu não esperava muito mais do que isso.

Lá, já eram cinco. Renata e eu entramos na sala primeiro, para cobrir o espelho com o cami preto de 11m que compramos. O objetivo era não só evitar que os alunos fiquem se olhando no espelho e assim se distraíssem da proposta, mas também ajudar a escurecer a sala para criar um clima mais intimista durante a aula. Espelho devidamente coberto, chamamos os alunos. Seis, sete e finalmente oito (o último chegou quando já passavam-se 10 minutos de aula).

Essa quarta foi o dia do bufão...

((Como esse dia é bem diferente, eu gasto um bom tempo deste relato falando sobre o bufão, os porquês desta escolha e a narrativa desta aula. Portanto, aviso desde já que este post é ainda (bem) maior do que os outros. Se tiverem paciência, leiam até o fim porque acho sinceramente que vale à pena...))

Dentre as figuras mais representativas do corpo e do cômico do realismo grotesco, está o bufão. Os bufões são os personagens característicos da Idade Média, “os veículos permanentes e consagrados do princípio carnavalesco na vida cotidiana” (BAKTIN, 1987, p. 7). Não eram atores que representavam um papel, mas, como uma espécie de fronteira entre a vida e a arte, o real e o irreal, eram bufões por toda a vida.

O bufão é a personificação do grotesco. Manifesta com liberdade e exagero os sentimentos e as necessidades humanas e o faz desprovido de qualquer vergonha ou pudor. Os bufões debochavam das instituições oficiais e das convenções sociais, pois não tinham nada a temer: escória da humanidade, o bufão nada mais tinha a perder. Dos três grandes medos do homem – a morte, o banimento e a loucura – o bufão só teme o primeiro, pois dos demais está provido por inteiro (CARMONA, 2004).

Com a modernidade, o bufão, que encontrou seu apogeu na Idade Média, transformou-se também num estilo de comicidade muito singular, onde o corpo grotesco e o discurso paródico são a mola propulsora para a criação cênica. Os estudos de bufão são trabalhados por escolas de renome internacional, como as de Phillipe Gaulier (Londres) e Jacques Lecoq (Paris) e, no Brasil, foi/é estudado por pesquisadores como Luís Otávio Burnier (Campinas) e Daniela Carmona (Porto Alegre).

Até 2007, todo o conhecimento que eu tinha em relação a um trabalho com o bufão vinha de registros contados por colegas palhaços que tinham participado de iniciações em que o bufão fazia parte da metodologia utilizada. Minha primeira iniciação como palhaça, orientada pelo argentino Diego Outon, não abordava o bufão ou o grotesco e foi só em Agosto do citado ano que, ao participar da oficina de Iniciação à Arte do Palhaço com Alexandre Luis Casali, experimentei pela primeira vez um corpo grotesco, um corpo de bufão.

O ‘dia do bufão’, na iniciação com Casali, foi para mim um marco no curso e na vida. Como atriz e palhaça, descobri o prazer de deformar o corpo, desfrutar das escatologias, sexualidades e palavreados que tanto insistimos em refrear. Como mulher, vivi uma verdadeira catarse, onde chorei, gritei e até descobri que desejava a separação do pai do meu filho. Como professora de educação especial, vi ali a possibilidade de um momento de trabalho em que o grosseiro e o bizarro, ao mesmo tempo tão presentes e tão renegados naqueles corpos deficientes, fosse experimentado pedagogicamente. E esta foi a minha escolha.

A presença do bufão como parte das escolhas pedagógicas foi ocasionalmente questionada durante o meu mestrado, pela conseqüente necessidade de um aprofundamento no assunto. Contudo, a opção que faço é de manter essa figura grotesca como trecho dessa estrada, por reconhecer cada vez mais o potencial deste trabalho, por sua identificação e possíveis contribuições ao deficiente intelectual.

Assim como o bufão carrega no corpo as cicatrizes de sua condição de exclusão e banimento (CARMONA, 2004), o corpo da pessoa deficiente traz os traços da sua deficiência, seja por fatores fisiológicos ou morfológicos, seja por uma aquisição de posturas sociais, motivadas por questões específicas de tratamento ou institucionalização.

O adulto com deficiência intelectual muitas vezes apresenta deformidades corporais, causadas ora pela própria síndrome que tem (a exemplo da Síndrome de Down, que traz como uma das características os olhos puxados e afastados), pelas conseqüências de sua deficiência (como a dificuldade na coordenação motora), ora pelas já mencionadas posturas sociais (corcundas, cabeça baixa, ombros recolhidos).

O grotesco está presente no deficiente intelectual também no controle das necessidades fisiológicas do corpo. O corpo grotesco aproxima o homem da sua condição de animal e das forças do baixo ventre: a fome, a sexualidade, as escatologias. A pessoa deficiente intelectual muitas vezes é desprovida de pudores ou valores morais que lhe privem de expressar seus desejos por comida, sua sexualidade e suas necessidades fisiológicas. É comum que beijem, abracem e toquem ‘em excesso’, que comam mais vorazmente do que costumamos presenciar e que não tenham tanto controle nas escatologias do corpo (a exemplo de um aluno meu de 2007 que não tinha qualquer controle da saliva – andava com uma fralda de pano à mão).

Baktin (1987) define a concepção grotesca de corpo como a consciência da eterna incompletude, da imperfeição. Freire (2004) defende que a inconclusão e o inacabamento do ser humano são próprios da experiência vital: “Onde há vida, há inacabamento”. O inacabamento é próprio também da deficiência. A pessoa com deficiência possui na sua constituição morfológica do cérebro, nas suas possibilidades de comunicação e locomoção e nos seus sentidos a concretização da incompletude, da inconclusão daquilo que seria esperado como ‘normal’.

Os processos de trabalho com o bufão, como escolha estética de comicidade, são inspirados tanto nas tradições medievais como nos chamados bufões sociais da atualidade: os mendigos, os bêbados, anões, corcundas, loucos, deficientes... Segundo Carmona (2004), Gaulier e Lecoq propunham a condução de deformações no corpo, como barrigas, corcundas e aleijos. Busca-se alcançar por meio de pesquisa o corpo grotesco com que a pessoa deficiente e outros bufões sociais interferem socialmente.

A preparação para a bufonaria proposta por mim em sala de aula não segue uma linha de exaustão física ou catarse, como eu experimentei com Casali, mas de fantasia: “O trabalho dos bufões está ligado a um espírito de brincadeira” (LECOQ, 2010, p. 189). Por considerar as dificuldades dos alunos com o trabalho físico e a pré-disposição ao grotesco (ao contrário de um iniciante ao palhaço ‘comum’, cheio de vícios e pudores cotidianos), o foco ficou no convite ao mundo às avessas, ao espaço da liberdade, ao tempo da abundância.

Os alunos, após um aquecimento do corpo, são chamados a dormir, para dali renascerem em uma gruta, escura, fétida e repleta de pequenos animais viscosos e bizarros. Nesta caverna, as escatologias e as vontades de um corpo que elimina sons, líquidos, gases, são não apenas permitidas, como bem-vindas. O aluno levanta-se e experimenta o exagero das suas próprias deformações de corpo e de voz, seus grunhidos, gestos e caretas.

Após um trabalho individual, os alunos são convidados a trabalharem em grupo, em bandos. Segundo Lecoq (2010) e Burnier (2001), os bufões, por serem marginais e marginalizados, vivem em bandos hierarquicamente organizados. O bando de bufões tem linguagens próprias, regras restritas e papéis bem definidos, onde cada bufão funciona como parte de um único organismo. O bufão encontra no bando sua força e proteção: “Solitário, ele é frágil e facilmente exposto às humilhações da sociedade” (BURNIER, 2001, p. 216). Em bando, eles experimentam atuar coletivamente com ações que representem necessidades primárias do corpo, como defecar, urinar, comer, beber e regurgitar.

É proposta então a formação de dois bandos, que devem se preparar para ir à luta (eu sussurrei para cada bando estímulos que provocassem neles a vontade de guerrear). A guerra, para o bufão, não é lugar de agressão, mas de divertimento. Lecoq (2010) afirma que os bufões se divertem o tempo todo, zombando da sociedade e imitando a vida dos homens: “Fazer uma guerra, lutar, estirpar-se os deixa felizes” (p. 181). Para evitar que eles se machuquem, os alunos foram orientados a lutar sem se tocar...

Após a guerra, é a hora do carnaval. Da festa, da abundância, do riso e da dança. Os bufões são convidados a dançar e se divertirem, até que a hora de dormir chegue outra vez. Após a última dança, pede-se que os alunos voltem aos seus cantos, no chão, para aos poucos tranqüilizarem seus corpos e deitarem. O clima muda e, como num último suspiro, despedem-se daquele submundo para nascer mais uma vez.

Essa é basicamente a narrativa do processo utilizado nesta quarta, durante a oficina. Renata ficou responsável pelo aquecimento, desaquecimento, avaliação, registro e apoio da aula. Eu fiquei com a parte do bufão em si.

A turma respondeu com energia e vontade à nossa diferente proposta. A sala foi escurecida e só acendemos as luzes quando os alunos ‘acordaram’ novamente após aquela vivência.

Foi necessário, como era de se esperar, estimular o trabalho o tempo todo. Eu falava, gritava, me mexia, no intuito de não ‘deixar a peteca cair’. E, apesar de alguns alunos que se distraíam ou cansavam certas vezes, a peteca do grupo não caiu. Afirmo, contudo, que até os que rejeitavam alguma provocação nossa nos trouxeram presentes revelando um pouco mais deles mesmos, o que serve e muito para o trabalho do palhaço de cada um que está por vir: um que achava tudo nojento (“ecaaa!”), outra que quer permanecer aparentando bonita de qualquer jeito...

Tivemos momentos inesquecíveis, certos andares, certos grunhidos que surgiram... A comilança e a guerra foram vividos com entrega unânime dos alunos. Eles se jogaram no chão pra comer, batalharam com toda a vontade do mundo, farrearam e, por fim, deitaram exaustos no chão. Exaustos, acabados. O trabalho do bufão que estava previsto para ser feito em 70 dos 120 minutos da aula aconteceu em 50 minutos, por causa do atraso e do notável cansaço dos alunos. Comentei com Renata que chegamos ao limite deles. Nem menos, porque eles deram o que tinha que dar até o último momento, nem mais, porque se ficássemos ali por mais tempo provavelmente não seriam todos que agüentariam permanecer no processo.

O processo foi encerrado por mim e Renata, que emendou com o relaxamento. Desta vez, não fizemos uma avaliação verbal ou fizemos uma retrospectiva da aula. Ontem, a idéia era viver, refletir e guardar pra si. No lugar da avaliação costumeira, distribuímos lápis, giz de cera, hidrocor e papel, para que cada desenhasse as suas impressões da aula. Terminados os desenhos, cada aluno descreveu sua visão em poucas palavras. Dos oito participantes, somente três compreenderam e atenderam ao pedido, desenhando sempre a caverna onde iniciamos a vivência. Os outros cinco ilustraram figuras aleatórias, como mar, barco, casa. Talvez um desenho que costumam fazer, não sei...

Uma rodada de olhares para finalizar o dia, antes do beijo na mão. (Precisamos repetir este exercício, pois muitos não conseguem olhar no olho do colega com calma e passam correndo por cada um.)

A aula acabou. Voltei para casa cansadíssima, suada, com dor na coluna e poucas palavras. Contente e ‘orgulhosa’ daqueles bufõezinhos que foram soltos na quarta-feira e voltaram à caverna para dormir.

O dia do bufão é sempre inesquecível...


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*Fotos por: Renata Berenstein

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Referências

BAKTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, 1987.

BURNIER, Luis Otavio. O clown. In: A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Unicamp, 2001. P. 205-221.

CAMPOS, Fernanda N. O grotesco no corpo do louco e do artista: dois distintos semelhantes. Ribeirão Preto: EERP – USP, 2008. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2010.

CARMONA, Daniela; BARBOSA, Zé Adão. Teatro: atuando, dirigindo, ensaiando. Porto Alegre: Artes e ofícios, 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. São Paulo: UNESP, 2005.

_____________. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

FOURNIER, Jean-Louis. Aonde a gente vai, papai? Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Intríseca, 2009.

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do “Prefácio de Cromwell”. Tradução e notas de Celia Berretini. São Paulo: Perspectiva, 1988.

LECOQ, Jacques. Os caminhos da criação: os bufões. In: O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral. Coma colaboração de Jean-Gabriel Carasso e de Jean-Claude Lallias. Tradução de Marcelo Gomes. São Paulo: Senac São Paulo, 2010. P. 178-190.

MORI, Nerli N. R. O Corcunda de Notre-Dame: grotesco, sublime e deficiência na Idade Média. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 34, p. 199-210, jun. 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2010.

PROPP, Vladimir. Comicidade e Riso. São Paulo: Ática, 1992.

THEBAS, Cláudio. O livro do palhaço. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.

Um comentário:

  1. "...após um aquecimento do corpo, são chamados a dormir, para dali renascerem em uma gruta, escura, fétida e repleta de pequenos animais viscosos e bizarros." Imaginei Caio, com suas caretas e gestos apurados, dizendo esse texto.

    Lindo relato. Me despertou um grande interesse em me aprofundar mais na figura do bufão. O trabalho, pelo que pude perceber, tem sido conduzido de maneira incrível, com todo cuidado e zelo que lhe são caros na figura de professora, mãe, palhaça, atriz, mulher... Você e Renata tão de parabéns! De verdade.

    Beijo.

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